Um primeiro passo para iniciar o diálogo sobre o Alzheimer, dando voz para quem vivencia a doença, não como paciente, mas como cuidador. Dia 21 de setembro é o Dia Mundial de Conscientização e Prevenção do Alzheimer, e nesse mês o blog Nova Maturidade, destaca o documentário Alzheimer na Periferia.
O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa, e, aos poucos, leva a memória e a autonomia dos pacientes, e transforma a vida também de quem se dedica ao cuidado. Dados da Associação Internacional de Alzheimer indicam que 50 milhões de pessoas têm demência, sendo a mais comum o Alzheimer. A estimativa é que esse número ultrapasse os 150 milhões em 2050.
O argumento do filme é do jornalista e professor do curso de Gerontologia da EACH-USP, Jorge Félix, e a direção de Albert Klinke, sócio-fundador da Malabar Filmes. O professor teve a ideia do argumento do documentário em um evento, em 2013, na Câmara Municipal de São Paulo, promovido pela Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), com a participação de moradores da periferia que viviam o desafio de cuidar de familiares com Alzheimer.
“Eu estava lá como pesquisador, mas, a gente não deixa de ser jornalista nunca. Eu pensei imediatamente em encontrar uma forma de contar aquelas histórias, dar voz àquelas cuidadoras. Pensei, primeiro, em um livro. Mas depois quando conversei com o Albert, percebemos que a melhor maneira era um documentário”, conta o professor (foto).
Jorge e Albert são cunhados e têm origem na periferia. Em entrevista ao programa Metrópoles, da TV Cultura, Albert afirmou que ficou muito feliz em voltar a periferia onde cresceu. Ele morou na Zona Sul de São Paulo, próximo de um dos personagens. Segundo o diretor, retratar a periferia é retratar o Brasil. Pessoas que acabam encontrando um jeito de encarar os problemas.
Produção
Uma das questões que surgiu na produção do argumento, de acordo com Jorge, foi que a doença é sempre representada no cinema, na literatura com personagens de classe média ou ricos. Segundo ele, isso induz, erroneamente, a percepção do público de que não existe Alzheimer entre os pobres. Outra questão é o desafio que a própria cidade impõe aos cuidadores da periferia.
A equipe, como conta Albert, dedicou aproximadamente um ano e meio para a pesquisa de personagens, com mais de cem entrevistas para chegar às cinco famílias de diferentes regiões da cidade de São Paulo, que mostram variados aspectos e momentos da doença. O passo seguinte foi passar uma semana na casa de cada uma delas e acompanhar o cotidiano. Depois, os familiares receberam câmeras simples, semelhantes a um celular, para registrar depoimentos como um diário.
“É um filme de utilidade pública. Minha preocupação é que não fosse algo jornalístico ou pegasse pesado, mas o mais humano possível. Tanto que a gente procurou iluminação, tudo pensado foi pensado para que nada fosse de forma dramática. A gente não mexia no ambiente das casas, era do jeito que estava e fizemos alguns planos abertos para entender também o ambiente, a personalidade da pessoa, como vivia”, conta.
A pré-estreia ocorreu em 2018 e agora o documentário está disponível no canal do YouTube – Alzheimer na Periferia. Confira o trailer.
Olhar da periferia
A proposta, segundo o diretor, é que mostrar que a periferia não tem uma cara apenas e que há diferentes formas de cuidar. Apenas em um dos casos é um homem quem cuida (Paulo e a tia Leonor), já que na maioria das vezes o cuidado cabe às mulheres. Também em apenas uma das famílias, o cuidado é compartilhado (Dona Cida e a filha Miriam), o que raramente acontece. Em destaque na foto principal, Vanusa, que se dedicava ao cuidado da mãe Valdirene com quem vivia em conflito antes da doença.
Outro ponto trazido pelo “Alzheimer na Periferia” é o idoso cuidando do idoso, como é o caso de Maria José (foto), que encontrou o amor ao lado de Daniel na maturidade, se casou e depois o marido foi diagnosticado com Alzheimer. E Paulo, que também perdeu o patrimônio para a doença.
“Eu queria contar um drama familiar. Óbvio que a doença é o ponto principal, mas como a família convive e como vive uma pessoa que tem que abrir mão da vida pessoal e profissional. O principal foco do filme é o ponto de vista do cuidador e não do doente. Normalmente se pensa no doente e se esquece do cuidador, daqueles que ficam doentes e depois até morrem”, destaca o diretor.
A mais nova entre as personagens retratadas, Márcia (que era cuidada pela filha Renata), faleceu em agosto desse ano em decorrência do rápido avanço da doença. Os outros pacientes retratados também já faleceram, assim como o cuidador Paulo.
Reconhecimento
Albert conta que o documentário aproximou a equipe do meio acadêmico. Em exibições para bancas de médicos de diferentes especialidades, muitos afirmavam que estava tudo ali, mostrando quase tudo que pode acontece com um paciente e a forma de cuidado.
O reconhecimento internacional também veio na forma de importantes premiações, como Melhor Documentário Social e Melhor Documentário sobre Saúde, nos Estados Unidos e outras conquistas no México e no Peru, o que não ocorreu no Brasil. “Eu achava que ia conseguir colocar o filme para passar nos cinemas públicos, que isso ia ser viável mas não conseguiu veicular aqui”, conta o diretor.
Embora seja um trabalho primoroso com apoio do Laboratório Aché, parte do filme foi custeado pela própria Malabar. “É um trabalho heróico do Albert ser o produtor. Mas a Malabar ganhou uma expertise incrível na área da saúde, principalmente. Ideias não faltam. Sobretudo nesse momento de pandemia. Acredito que o audiovisual é um caminho muito eficiente para promover transformações”, destaca o professor.
Jorge participa do quadro Bem Estar, atualmente parte do programa Encontro com Fátima Bernardes na Rede Globo: “Em meu trabalho na tevê eu busco isso. Espero conseguir mostrar outras questões do envelhecimento por meio de documentários”.
Diferentes finais
E será que as histórias do filme poderiam ter um final diferente? “Em termos de políticas públicas, até mesmo se formos analisar por uma visão econômica, o suporte ou construção da rede de proteção social ao cuidador é fundamental, porque o cuidar o afasta do mercado de trabalho”, avalia o professor.
Porém, segundo Jorge, pelo lado humanista, todas as cuidadoras ou cuidadores passam a ter a existência permeada pela frustração: “Frustração de ter que abandonar seus sonhos de vida, de carreira, de realização para se dedicar a outras pessoas da família, uma vez que, por morarem na periferia, tudo fica mais difícil, tudo gasta mais tempo”.
Para Jorge, o Alzheimer na Periferia mostra como o acesso aos equipamentos são raros ou difíceis, sejam equipamentos de saúde, de justiça e de apoio psicológico. “Um programa de apoio a quem cuida, hoje, é fundamental e será cada vez mais necessário sob pena de atingir a produtividade geral da economia. Só o fato de nos questionarmos se o cuidado deveria ser o quarto pilar da seguridade social já era um avanço na discussão, provocada pelo livro da Camarano (Cuidados de Longa Duração para a Pessoa Idosa). Essa discussão precisa voltar à agenda. Mas sou pessimista quanto a isso. Quando ela for consenso, acho que será tarde em termos econômicos para o país”. (Katia Brito)