Demorou mas finalmente chega ao blog a cobertura que fiz do bate-papo “Envelhecimento LGBT”, realizado no dia 25 de maio, no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo. Espaço que eu ainda não conhecia e fiquei encantada, uma ilha de artes, esporte e cidadania para todas as idades.
O escritor João Silvério Trevisan, que no dia 23 de junho completará 75 anos, e Marisa Fernandes, 66, mestre em História Social pela USP, trouxeram sua experiência de mais de 40 anos de amizade e ativismo por cidadania e reconhecimento. João, também jornalista, dramaturgo e cineasta, assumiu sua homossexualidade nos anos da ditadura militar e viveu um exílio voluntário nos Estados Unidos. Na volta, foi um dos fundadores do Grupo Somos, dedicado a defesa dos direitos homossexuais na década de 1970. Marisa, especialista em gênero e família, também fez parte do grupo, sendo co-fundadora do Lésbico Feminista, e desde 1990, integra o Coletivo de Feministas Lésbicas.
Na abertura do bate-papo, Marisa falou das velhices muitas vezes vividas sem famílias, rejeitados ou expulsos pela identidade de gênero diferente; ou ainda a solidão, com a morte de amigos e os raros casos amorosos, e a questão financeira por terem aceitado ao longo da vida aceitado salários menores, aquém de suas capacidades e competências. Foi citado também a Lei de Identidade de Gênero, proposta pelo então deputado federal Jean Wyllys e deputada Érika Kokay, de 2013, que determinava o reconhecimento da identidade de gênero, e o desenvolvimento pessoal e o tratamento conforme esta identidade. O projeto foi arquivo em janeiro deste ano.
Para o escritor, há uma resistência que permanece da parte de quem está na contramão da sociedade e acredita no que é. Ele destacou também a finitude, a necessidade de envelhecer sem medo, sem susto, compreendendo o que somos. “A minha vida é finita, é única”, afirmou. Confira a conversa que tive com os dois antes do evento.
Nova Maturidade: Como foi o início da luta de vocês?
João Silvério Trevisan: Nós estávamos começando um negócio que a gente não sabia nem sequer o beabá. Para vocês, as lésbicas, com toda a perspectiva feminista então foi ainda mais complicado, porque vocês acrescentaram um elemento importantíssimo ao feminismo.
Marisa Fernandes: Foram muitos sonhos e lutas, foi o primeiro grupo no Brasil dentro de uma ditadura militar, foi muito complicado. Ele (João) tinha uma referência de vivência que era pessoal. Se ele não aderisse ao movimento, por exemplo, se não fosse um dos fundadores, aquilo ia ficar guardado porque a gente não tinha acesso. A gente lutava a princípio pela nossa identidade, como era tratada. Quando chegava a aparecer na Imprensa era da pior maneira possível. A gente tinha a escritora Cassandra Rios, que foi a mais vendida do período a ditadura, mas também a mais censurada. Tudo era uma afronta a moral, aos bons costumes, muito parecido inclusive com que a gente está vivendo atualmente no país.
João: Nós tentamos, por exemplo, editar um livro de doenças venéreas para homossexuais, muito especificamente doenças venéreas voltadas a gays e foi uma loucura até nós conseguirmos o contato com o grupo canadense que nos autorizou a utilizar um manualzinho que eles já tinham. Nós traduzimos e nunca foi publicado porque nos não tínhamos dinheiro, não tinha onde, não existia este sistema de hoje, era tudo ao Deus dará, era começar do zero mesmo. Não tão do zero, porque no meu caso, eu já voltei dos Estados Unidos com uma bagagem, passei três anos em exílio voluntario e lá entrei em contato com o movimento pelos direitos homossexuais.
NM: E como vocês vêm o movimento hoje?
Marisa: O que nós começamos em São Paulo, hoje tem no Brasil inteiro.
João: Nós estamos aqui, temos que tomar cuidado porque nós estamos aqui, não é brincadeira. Nós plantamos, e quando digo nós, são muitas pessoas que não estão brincando em serviço. Eu ainda fico impressionadíssimo quando eu vejo a quantidade de jovens nas ruas, as meninas elas são muito atrevidas. Por exemplo, a Parada (LGBT, a de São Paulo está prevista para o dia 23 de junho) é um espetáculo indescritível, especialmente para quem viveu naquele período. A gente jamais poderia imaginar. Não é que as pessoas estão fazendo festa pela festa, elas estão fazendo festa por aquilo que elas descobriram que elas são, então é uma festa que tem muita raiz. É uma celebração amorosa, é o nosso orgulho. Eu sempre achei que as Paradas são um fato politico da primeira ordem, e o elemento mais importante desse ato politico é a luta pelo direito de amar, o resto é derivado disso.
Marisa: É o orgulho de ser o que é mesmo. A Parada do Orgulho, os avanços que a gente a começou, poder estar no maior centro financeiro de são Paulo, na avenida mais importante.
NM: Como é lidar com mais este preconceito, o envelhecimento?
João: Eu me olho no espelho, eu sou um velho. Não posso dizer que eu sou um jovenzinho, não tenho a menor intenção disso. Agora é claro que se acrescenta a isso um outro adjetivo, que não coube a mim adjetivar, mas que é o homossexual. Tem uma série de outros elementos que cercam esta circunstância que não é pequena, porque vai contra a corrente, e este ir contra a corrente significa não apenas a corrente cultural que tem problema com o envelhecimento, mas o problema do envelhecimento dentro da comunidade LGBT. A comunidade é muita preconceituosa.
Marisa: A gente no começo esperneava, porque nós já temos duas grandes discriminações por ser mulher e por ser lésbica. Agora uma mulher, velha e sapatão, é muita coisa pra sociedade, para a cultura engolir. O preconceito por ser hoje sapatão é mais fácil do que era naquela época. Naquela época ser homossexual era ser repugnante, hoje essa carga do preconceito vai até desaparecendo, você só é uma mulher velha.
João: Aí tem um negocio importantíssimo que você (Marisa) mencionou que é a volta da invisibilidade, porque bicha, sapatão, tudo bem, agora velho? Bicha e velha sapatão, isso existe? Não morreu antes, não se converteu até agora, como é que mantêm essa falta de vergonha? Estes elementos todos que podem nem ser verbalizados, mas eles são muito presentes.
NM: Qual a expectativa de vocês para o futuro, haverá uma mudança da mentalidade?
João: Eu não espero na minha vida, porque nós já conseguimos muito, seria desejar demais. Eu acho que o que aconteceu com a questão do STF (o Supremo Tribunal Federal, decidiu em maio pela criminalização da homofobia), por exemplo, o Fux (Luiz) mencionou bem, trata-se de uma questão cultural impregnada, e se não for tomada uma atitude, essa cultura vai permanecer por todo sempre. A esperança é que se entrar em cena um fator que barre isso, é possível que dentro de alguns séculos mude alguma coisa, mas olha você (Marisa) tinha sonhado um dia que ia ver uma Parada? Eu choro toda vez que eu vou.
Marisa: Eu não… As conferências nacionais LGBT, imagina grupos de militantes do Brasil inteiro para pedir e exigir políticas públicas. Não que dê resultado satisfatório, tudo é muito lento.
João: Hoje a comunidade LGBT, Y, Z, H, ela depende muito menos da liderança. No nosso tempo era uma coisa impressionante, se não houvesse a liderança, não haveria a luta. Atualmente uma menininha tem discurso direitinho, porque eles vão atrás, não é que ninguém foi lá fazer a cabeça. Isso eu acho muito importante, eles já tem uma consciência politica, consciência critica, que eu nunca vi até agora na comunidade LGBT. Eu escrevi muito cutucando a comunidade pela falta de consciência politica, hoje eu não faria mais isso. (Katia Brito)