“O tabu da morte é o tabu da vida, porque não existe escolha morrer ou não morrer, mas existe escolha entre viver ou não viver”. A afirmação é da médica Ana Claudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos há mais de 20 anos e autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver” (Editora Sextante), que foi lançado em 2016 e está na segunda edição. Conheci o trabalho dela por recomendação de uma amiga e é impressionante a sua abordagem para um tema tão difícil para a maioria de nós.
Vale muito a pena estar entre as quase dois milhões que já viram o vídeo (disponível no YouTube) da palestra com o mesmo nome do livro no TEDx FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Ana Claudia também deu uma palestra para o elenco da novela “Bom Sucesso”, que vai substituir “Verão 90” no horário das 19 horas da Globo, e terá como um dos temas a morte, a partir da doença terminal do personagem de Antonio Fagundes.
Formada pela USP, a médica fez residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP, pós-graduação em Psicologia – Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações de Psicologia e especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e Universidade de Oxford. Desenvolve cursos e intensivos de Conversas sobre a Morte e trabalha com atendimento de pacientes na Geriatria, Cuidados Paliativos e Suporte ao Luto. Mais informações sobre os cursos e atividades desenvolvidas pela médica no site Humana Vida. Confira a entrevista dela ao blog.
Nova Maturidade: O que a motivou a trabalhar com geriatria e cuidados paliativos?
Ana Claudia Quintana Arantes: O que me motivou a trabalhar com geriatria foi o encantamento pelo processo de envelhecimento, o quanto que eu como médica poderia ser valiosa para ajudar as pessoas a viver esse envelhecimento de maneira digna e feliz. Os cuidados paliativos se manifestaram na minha carreira como uma fonte de alívio do meu próprio sofrimento frente ao sofrimento dos pacientes. No segundo ano da residência em geriatria eu ganhei de presente um livro da dra. Elisabeth Kubler Ross (psiquiatra suíça, pioneira nos estudos sobre cuidados paliativos, a morte e o luto).
NM: Nesta época já havia cursos sobre cuidados paliativos no Brasil?
Ana Claudia: Não havia nenhum curso no Brasil. Eu comecei a estudar este tema em 1996 e consegui ter acesso a um curso em 2006. Então foram dez anos de vida autodidata, depois fiz a minha formação pelo Instituto Pallium, que é um grupo argentino. O currículo tem o reconhecimento pela Universidade de Oxford.
NM: Como podemos definir cuidados paliativos?
Ana Claudia: Os cuidados paliativos fazem parte de uma abordagem de cuidados ao sofrimento humano. Quando uma pessoa está diante de uma doença que ameaça a continuidade da vida dela, os cuidados paliativos acabam por ampliar essa assistência ao sofrimento, porque a gente vai cuidar da dimensão emocional, familiar, social e espiritual, e também evidentemente de todo o sofrimento físico que qualquer doença ou qualquer tratamento mais agressivo possa proporcionar para esta pessoa. É importante que fique claro, o cuidado paliativo não é desistir do tratamento que está sendo feito. Cuidado paliativo é insistir na qualidade de vida, é escolher uma vida boa de ser vivida, e essa vida boa de ser vivida pode ser prolongada tanto pelos cuidados paliativos como no tratamento da doença de base.
NM: Há mais interesse dos médicos por esta área?
Ana Claudia: Sim, os médicos tem tido mais interesse até por essa oportunidade de conversar sobre isso, pela conversa sobre a morte permanecer atualmente como foco da mídia. O livro que eu escrevi (“A morte é um dia que vale a pena viver”) tem sido muito bem-vindo, tanto como presente de Natal, Dia dos Pais, Dia das Mães, e também como parte de bibliografia de pós-graduação. Acho que é um tema que está sendo muito bem acolhido pelas pessoas, de alguma forma há um despertar sobre esta questão da finitude, porque todo mundo vai passar por isso.
NM: Com a mudança na pirâmide etária do Brasil, o envelhecimento da população, esta questão deve ser ainda mais evidenciada?
Ana Claudia: Evidentemente que a gente vai enfrentar problemas bem mais graves do que a morte. Eu falo que a morte é um dia na vida das pessoas, mas todo o processo de envelhecimento, de adoecimento sem assistência, de falta de consciência de preparo, é um tempo de muito sofrimento no nosso país. Na minha opinião, a gente não se preparou para esse inversão da pirâmide etária, e nós vamos ter que arcar com as consequências disso. Os nossos filhos tendo que dar conta desse envelhecimento porque a gente não criou mais filhos para cuidarem da gente, a gente criou filhos para o mundo, isso significa que eles vão para o mundo e não vão ficar cuidando da gente. Isso traz como consequência um grupo que vai ter mais doenças degenerativas, mais gente com demência sem receber cuidado e que nem sabe que precisa de cuidado. O que nos aguarda é algo bastante sombrio.
NM: Os cuidados paliativos abrangem a família?
Ana Claudia: Óbvio que sim, ninguém adoece sozinho. Quando a gente fala sobre a dificuldade em lidar com a morte, a gente vai perceber que a grande maioria das pessoas que fala sobre essa dificuldade, diz da dificuldade que tem em relação à morte do outro, das pessoas que ama. Os cuidados paliativos abrangem os cuidados de sofrimento da dimensão familiar.
NM: Como se dá a decisão de adotar cuidados paliativos?
Ana Claudia: O paciente pode optar pelo cuidado paliativo não como uma alternativa, não é uma coisa ou outra, ele pode continuar o tratamento da doença de base dele e ter cuidados paliativos. Quando o tratamento traz mais malefícios do que benefícios essa é a hora em que a grande maioria das pessoas diz chega, não quero mais fazer tratamento. No Brasil, você pode sim fazer essa opção e recursar tratamentos considerados por você fúteis, desnecessários ou agressivos acima da medida da sua capacidade de suportar.
NM: Qual o papel da família nesse processo?
Ana Claudia: O papel da família é fundamentalmente apoiar o paciente na decisão dele, porque é muito fácil eu decidir o que meu filho ou meu pai faz de tratamento, mas quem tem que passar pela dor do tratamento, pela dificuldade, pelo tempo do tratamento, pelo sofrimento, não sou eu. Eu não posso decidir algo para o qual eu não vou ser submetida. É importante que a família saiba o que o paciente quer e apoie aquilo que ele decidir sobre o que ele não quer. O desafio que a gente tem é educar as nossas famílias para que elas respeitem a nossa vontade, e isso a gente não faz, por isso que tem tanta dificuldade de as famílias aceitarem quando o paciente diz não.
NM: Como surgiram as “Conversas sobre a Morte” e as outras atividades que você realiza?
Ana Claudia: Eu percebi que as pessoas querem falar e ouvir sobre o assunto, e o espaço para ter essa conversa geralmente não é fácil de encontrar. A procura vem crescendo. Minha decisão de abrir os cursos intensivos de “Conversas sobre a Morte”, rodas de conversa, “Jantar com a Morte”, “Café com a Morte”, discussão aberta ao público sobre o tema, vem da percepção que você não precisa ter uma doença grave para ter uma vida que vale a pena viver. Na minha experiência como paliativista, eu vejo que muitas pessoas acabam vivendo uma vida maravilhosa depois que elas sabem que a vida vai acabar.
NM: E o curso Doula da Morte (pessoas que auxiliam pacientes no fim da vida)?
Ana Claudia: O curso é inédito no Brasil. Eu fui convidada para ser docente e quando vi a programação, percebi que eu não poderia não fazer parte desse primeiro grupo, mesmo porque a grande maioria das pessoas está fazendo porque foram despertadas pelo tema ou pelo meu livro, ou por um vídeo ou por uma entrevista minha. Tem mais de 60 pessoas fazendo o curso, então é realmente uma demanda que tem acontecido e eu acredito que vá crescer.
NM: Por que há tanta dificuldade em falar sobre a morte, em aceitar a finitude da vida?
Ana Claudia: Quem não dá valor à própria vida, acaba tendo muita dificuldade em falar sobre a morte, porque uma vez que você não dá valor, não tem consciência da importância do seu tempo nessa existência, se você falar sobre a morte você vai ter que lidar com essa realidade da falta de compromisso, da falta de responsabilidade que você teve até agora em relação a sua própria vida. Se você não quiser falar sobre a morte não tem problema, morre também. Se não quer aceitar a finitude também não tem problema, você também vai ter sua finitude.
NM: Como fica esta questão da morte, da finitude diante do envelhecimento, que também é um tema difícil para algumas pessoas?
Ana Claudia: A questão do envelhecimento também é um tema difícil, e esse tema difícil diz respeito ao que a gente consideraria o sucesso da vida. Se você envelhece é porque você não morreu, é uma alternativa a morte. As pessoas que morrem de medo da morte deveriam valorizar muito o processo de envelhecimento e cultivar a capacidade de envelhecer bem, de não estragar na vida. Eu falo que tem diferenças básicas entre uma pessoa que envelhece e uma pessoa que estraga. A pessoa que estraga não se preparou para morrer, para envelhecer, para viver a sua finitude. As pessoas que envelhecem são aquelas que se preparam todos os dias para chegar no final do dia mais velha, mais experiente, mais sábia, e provavelmente mais curiosa pra ver o que vai acontecer no dia seguinte.
NM: Ao longo dos anos você acredita que a dificuldade em falar sobre a morte vem diminuindo?
Ana Claudia: Evidentemente eu percebo que a dificuldade é menor. Para mim era impensável que eu estivesse viva num primeiro “Curso de Doula sobre a Morte”, viva e com saúde para aproveitar esse tempo. Eu acredito que o espaço que nós percorremos no Brasil nos últimos dez anos foi um salto quântico de consciência, eu vejo pelos feedbacks dos cursos, do livro, das entrevistas, dos vídeos, o quanto que essa conversa tem aberto para as pessoas a possibilidade de viver uma vida boa mesmo com dificuldades, mesmo que você tenha problemas para resolver não significa que a sua vida não é boa.
NM: Você acha que a morte deveria ser discutida desde a infância?
Ana Claudia: Eu penso que a gente deveria discutir desde cedo, porque as crianças morrem também. A gente percebe, por exemplo, nas escolas que quando as crianças têm uma doença grave, os professores não sabem lidar. As crianças sabem, por incrível que pareça a gente já vem com esse aplicativo instalado de fábrica, de saber lidar com as diferenças, com a perda, com a dor. As crianças se amparam de uma maneira muito mais potente que os adultos, e depois os adultos se encarregam de destruir essa semente maravilhosa de compaixão que as crianças têm. A gente deveria abrir esse espaço, principalmente pelo fato de essas crianças lidarem com esse envelhecimento dentro da casa delas, as pessoas estão envelhecendo e é preciso que as crianças participem dessa realidade. A gente não vai ter como poupá-las da perda, então é melhor que a gente não as poupe da vida dessas pessoas que envelhecem na família. Abordar essa questão é uma arte de ensino de compaixão, eu acredito que é possível a gente ensinar isso na escola sim. (Katia Brito / Imagem de Arek Socha por Pixabay)