Uma das conclusões da pesquisadora Marília Duque em seu livro “Ageing with smartphones in urban Brazil – A work in progress” (UCL Press), em tradução livre “Envelhecer com smartphones no Brasil urbano – Um trabalho em Progresso”, publicado em abril, é que há um silenciamento da velhice. A versão digital pode ser acessada gratuitamente pelo link https://lnkd.in/dvE7pKsG e as cópias impressas estão à venda no site da UCL Press.
“Não é o mesmo silenciamento de que tratou Simone de Beauvoir no livro ‘A Velhice’. O envelhecimento populacional é uma realidade e pauta da agenda global. Além disso, esse não é mais um assunto silenciado publicamente. Ao contrário, a velhice ganhou visibilidade sendo tratada frequentemente pela mídia”, explica.
Para Marília, o silenciamento de que trata o livro é sobre sua observação de que os participantes de sua pesquisa não encontram espaço para os declínios e fragilidades naturais do envelhecimento: “Eles se mostram como saudáveis, sociáveis, produtivos, participativos, autônomos, enfim, como idosos ativos. E silenciam suas dores e necessidades de filhos e também de seus pares. Entre os participantes, há a distinção entre velho e ‘velho, velho’. E ninguém quer ser esse ‘velho, velho’”.
Em relação à família, segundo a pesquisadora, há a preocupação de não darem trabalho, a expectativa de que os filhos não cuidem deles na velhice, e também o receio de serem postos “sob administração” por filhos, com restrição de suas liberdades e desejos. “No livro, eu trabalho com um autor chamado Goffman que fala de como adequamos nossa performance na interação com o outro, deixando nos bastidores aquelas informações que podem comprometer a nossa imagem. As redes sociais permitem esse jogo e a pesquisa qualitativa permite acessar esses bastidores”, ressalta.
Um exemplo citado por Marília é que os participantes da pesquisa de campo, que é anterior à pandemia, participavam de muitas atividades que geralmente resultavam na criação de um grupo de WhatsApp: “Pude observar casos em que os idosos tinham um problema de saúde e se ausentavam dos encontros presenciais. Esse motivo não era compartilhado. Ao contrário, geralmente a ausência era apresentada como falta de tempo, seja por uma demanda da família ou pelo preparativo de uma viagem. Nesse período, a participação nos grupos de WhatsApp se intensificava”.
A pesquisadora explica que esses idosos podiam então continuar ativos e participativos enquanto iam tratar de seus problemas de saúde ‘nos bastidores’ acionando apenas os amigos mais próximos e por meio de mensagens privadas. “Dessa forma, eles ganhavam tempo e espaço para se recuperarem sem correm o risco de serem classificados como ‘velhos, velhos’. Quando recuperados, retomavam os encontros presenciais já aptos a se apresentarem integralmente como idosos ativos. Isso é um silenciamento e pode ser muito solitário”, avalia.
Isolamento X Entusiamo
O tema para o livro, de acordo com a pesquisadora, veio do projeto global Smartphone SmartAgeing, que reuniu pesquisas do Brasil, Chile, Camarões, Uganda, China, Japão, Itália, Irlanda e Al Quds. “Além dos livros individuais, escrevemos juntos o livro ‘The Global Smartphone’ que foi traduzido também para o português com download gratuito. Nesse livro, tratamos também da questão do uso de smartphones e impactos para a sociabilidade. Um dos capítulos trata da ‘Morte da Proximidade’, quando estamos próximos, mas longes, cada um conectado em seu smartphone”, conta.
Marília explica que o trabalho conjunto também apontou uma ambivalência com relação aos discursos que mesclam as críticas com relação à adição e isolamento e o entusiasmo com relação à possibilidade de ultrapassar barreiras geográficas por meio dos smartphones, reunindo, por exemplo, a família transnacional.
“No meu livro, trato do uso dos smartphones e, particularmente da importância do WhatsApp, para a expansão da sociabilidade na velhice. O WhatsApp inverte a perspectiva de que com o envelhecimento a rede social tende a diminuir. Além disso, a conexão via múltiplos grupos de WhatsApp resulta, para os participantes da minha pesquisa, em uma poderosa rede de informação, cuidados e solidariedade”.
A pesquisadora propõe que os grupos de WhatsApp funcionem como um mecanismo que se retroalimenta, ou seja, as atividades presenciais resultam em novos grupos que são usados pelos participantes da pesquisa para divulgarem novas oportunidades de atividades, que geram outros grupos, resultando em uma rede em constante expansão.
Sociabilidade pelos smartphones
Além da expansão da rede de amigos proporcionada pelos grupos de WhatsApp, Marília avalia que as conversas via aplicativo proporcionam a proximidade com filhos, netos e parentes que moram longe e resgatam o que chamamos de família estendida.
“As conversas com a grande família que antes eram restritas a telefonemas ou encontros em datas especiais ganham o dia a dia e os idosos da pesquisa desempenham um papel importante de manter o fluxo da conversa e os laços familiares. Mas é interessante que as necessidades diárias são mais orientadas para os grupos de amigos, já que esses idosos não querem ‘dar trabalho’”, ressalta.
Essa conexão possível com os smartphones, de acordo com a pesquisadora, permite, por exemplo, que eles vejam TV enquanto conversam entre si e que também solicitem favores com base na reciprocidade. Uma sociabilidade que também pode trazer alguns problemas.
“O desejo de contribuírem para os grupos com informações úteis aos pares às vezes resulta no compartilhamento de fake news. Muitos idosos também reclamam do fluxo de informação e da incapacidade de acompanhar tudo o que está acontecendo. Muitos deles não conseguem silenciar as notificações e acabam tendo até o sono prejudicado”, alerta.
Quem é Marília Duque?
Formada em publicidade pela ECA-USP, aos 36 anos, Marília Duque (Foto: Divulgação) começou a pensar em como seria sua vida profissional no futuro, o que depois se tornou a questão central de sua pesquisa com idosos em um bairro de classe média de São Paulo. Como eles, ela sentiu que precisava se reinventar, optou pelo futuro acadêmico, e começou o mestrado na ESPM São Paulo com uma dissertação sobre reputação conectada em rede.
“Uma das conclusões do mestrado era sobre a tendência de silenciamento das redes, quando as pessoas começavam a curtir e a compartilhar mais do que a postar conteúdos pessoais. Decidi então estudar esse comportamento no doutorado”, conta.
Em 2016, apresentou o projeto de doutorado sobre Espiral do Silêncio em redes sociais em uma conferência em Londres e, depois de uma entrevista foi convidada por Daniel Miller, professor de Antropologia da University College London e autor do livro do projeto Why We Post sobre usos de redes sociais, para ser a pesquisadora brasileira do seu novo projeto global ASSA Smartphone SmartAgeing que estudaria os impactos dos usos de smartphones para saúde e envelhecimento.
De volta ao Brasil, Marília mudou o projeto de doutorado que foi conduzido na ESPM São Paulo em paralelo ao projeto de Londres, tendo como base a mesma pesquisa de campo realizada em São Paulo. Logo no início da pandemia, em 2020, criou a campanha “Anjos no WhatsApp”, por meio de post em suas redes sociais, que convidava as pessoas a buscarem na sua rede de contato no WhatsApp idosos que morassem sozinho.
A tese defendida em 2021 foi na área de Comunicação e Consumo e, o livro publicado em abril é na área de Antropologia. “O mais interessante nessa mudança é que eu acabei estudando também a questão do silêncio”, destaca ela, que completou recentemente 45 anos.
A pesquisa atual está focada na aceleração da digitalização de serviços e em como a questão da exclusão digital deve ser tratada como exclusão social. Em parceira com Adriana Lima, iniciou nesse ano o LiteraCity, um laboratório que pesquisa a interface entre cidade, tecnologia, literacia digital e cidadania produzindo conhecimento acadêmico aplicado para políticas públicas e iniciativa privada.
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